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Geisel e a bomba atômica brasileira
Geisel e a bomba atômica brasileira

    Por Marcelo de Moraes; Estadão
  

Geisel admitiu possibilidade de construir a bomba atômica brasileira 

Em reunião em 1974, presidente manifestou o temor de  que a Argentina testasse uma arma nuclear

 

 O então presidente Ernesto Geisel é visto em julho de 1976.

 O então presidente Ernesto Geisel é visto em julho de 1976.  Acervo Estadão/AE

 

Arquivos secretos do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) mostram que o  ex-presidente Ernesto Geisel admitiu a possibilidade de o Brasil construir sua  arma atômica dentro de sua política nuclear. Em exposição feita ao Alto Comando  das Forças Armadas, em 10 de junho de 1974, Geisel reconhece a preocupação do  governo e dos militares em relação ao fato de a Índia ter detonado uma bomba  atômica e à possibilidade de os vizinhos argentinos também o fazerem.

Por conta disso, afirmou que considerava como um dos pontos básicos a serem  adotados "desenvolver uma tecnologia para a utilização da explosão nuclear para  fins pacíficos, o que nos permitirá, inclusive, se necessário, dispor de nossa  própria arma", disse o general.

A fala de Geisel aos militares é um momento marcante de seu mandato, quando  decidiu se encontrar com o Alto Comando em Brasília, numa reunião secreta no  início de seu mandato presidencial e apresentar o que considerava como aspectos  mais importantes. A reprodução da fala do presidente faz parte do acervo do  EMFA, que acaba de ser liberado pelo Arquivo Nacional, em Brasília, e ao qual o  Estado teve acesso.

Geisel fez questão de abordar a questão nuclear com o Alto Comando. "Por seus  importantes reflexos sobre a segurança nacional, não desejo encerrar esta  exposição sem uma referência especial à política nacional para o uso da energia  nuclear", avisou.

E demonstra sua preocupação em evitar que o Brasil fique para trás em questão  de desenvolvimento no setor, tanto para fins econômicos, através da produção de  energia, quanto no campo militar. Nesse momento, ele trata abertamente da  preocupação com eventuais avanços da Argentina nesse setor.

"A explosão recente de uma bomba nuclear pela Índia provocou comoção mundial  e temos que considerar a hipótese de, em futuro não longínquo, a Argentina  também pode explodir a sua. Evidentemente, isto gera inquietação entre nós e  todos indagam qual será a posição do Brasil face à situação", diz.

Geisel lembra aos presentes que, em anos anteriores, o Brasil teve "a  preocupação de preservar relativa liberdade de ação nesse campo". E que, "por  isso, o governo Castello Branco decidiu que o Brasil não deveria abrir mão do  direito de realizar explosão nuclear para fins pacíficos, bem como não assinou,  mais tarde, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, a despeito das  fortes pressões exercidas pelas potências atômicas".

O  general compara o quadro nuclear brasileiro com o da Argentina,  lembrando que os vizinhos tiveram "relativa facilidade de encontrar urânio",  sendo "mais favorecida pela natureza que o Brasil". E avaliou que ficaram em  situação favorável para produzir armas nucleares.

"Ora, dispondo de urânio, orientaram-se para a geração de energia partindo do  urânio natural, ficando na dependência, apenas, da importação de água pesada.  Certamente consideraram, também, que a solução adotada, embora muito menos  econômica, permite obter consideráveis quantidades de plutônio, que pode servir  para construir a arma nuclear", explica.

"O governo brasileiro, com vistas à obtenção de energia elétrica, preferiu o  processo atualmente mais econômico, que é o da utilização do urânio enriquecido.  Por essa razão, contratou-se com firmas americanas a construção da Usina de  Angra dos Reis, à base de urânio enriquecido. Pelas condições do contrato, o  urânio que será usado em Angra dos Reis está sujeito a salvaguardas da Agência  Internacional de Energia Atômica e por isso teremos que restituir o plutônio  produzido", diz.

"Nesse quadro, devemos evitar a abordagem passional do problema, capaz de nos  conduzir a decisões precipitadas, por influência das supostas possibilidades ou  intenções da Argentina", acrescenta.

Apesar disso, Geisel avisa aos militares presentes que estava em fase de  revisão o conceito estratégico nacional "formulado anos atrás". E foi direto:  "Dentro da necessidade de atualização, ressaltada pelo EMFA, o conceito deverá  abranger a hipótese de guerra continental envolvendo a Argentina".

No discurso, Geisel trata de tudo, de política interna a economia. Feito dez  anos depois da tomada do poder pelos militares é quase uma carta de intenções do  presidente, que avisa considerar uma anormalidade os militares exercerem o poder  no País, além do uso de atos de exceção. Afirmou também que fazia parte de sua  missão preparar o Brasil para retomar o governo democrático. E que se não o  fizesse a missão caberia ao seu sucessor – como acabou acontecendo com o general  João Batista de Figueiredo, último presidente militar. Geisel, porém, avisou que  não abriria mão de utilizar os instrumentos de que dispunha para manter a ordem  no País.

O documento com a íntegra da fala de Geisel foi registrado nos arquivos do  EMFA pelo general Hugo Abreu, então ministro do gabinete militar do presidente.  O jornalista Elio Gaspari faz referência a trechos desse discurso na sua  monumental série de livros sobre a ditadura. Seu acesso a essa fala  presidencial, segundo registra sua obra, foi feita através de um calhamaço de 40  folhas anotadas por Heitor Ferreira, então secretário de Geisel.